Antes de começar a falar do livro, é preciso dizer algo que talvez diga mais sobre meu gosto do que sobre o panorama atual da literatura de especulação brasileira: dificilmente consigo ler muita coisa de fantasia publicada hoje, especificamente de nossa literatura brasileira. Os motivos são vários, e alguns dos principais é falta de critividade na escolha de temas/elementos e mesmo a ausência de um trabalho mais minucioso na prosa. Há elementos batidos, como dragões e batalhas, usados em profusão e mesmo universos criativos sem o aprofundamento necessário, tudo amealhado com a falta de estilo que infelizmente, ao lado da falta de criatividade, ainda parece ser o calcanhar desprotegido de nossa literatura de fantasia. Não faço aqui uma crítica por criticar. Me coloco como um leitor, como alguém que gosta de histórias, e entendo que muitas vezes nossos autores deixam a desejar. Mesmo alguns consagrados escrevem num estilo desanimador, muito preocupados em ser um Tolkien ou um Asimov do século XXI, mas pouco envolvidos na depuração da própria escrita. Pode ser que eu tenha uma visão obtusa da situação, mas enxergo que a excessiva importância dada a conceitos, nomes de personagens e referências mitológico-literárias primárias acabam gerando obras derivativas e mesmo sem graça, infelizmente. Esse descuramento acaba servindo para reforçar a tal clivagem entre literatura de arte e literatura de entretenimento, tão citada pelos escritores de fantasia que às vezes toma a forma de complexo a ser vencido, o que para mim é realmente uma pena.
Corte para o Flashback.
Estávamos algumas colegas e eu na editora esperando os arquivos chegarem do estúdio, mas aparentemente o material demoraria um pouco ainda. Nós da equipe de revisão decidimos dar uma saída e ir ao mercado para matar tempo, mas no meio do caminho resolvi ir a uma livraria de RPG que fica próximo a meu trabalho. Apesar de estar geralmente destrancada, a porta de madeira da livraria permanecia costumeiramente encostada e com um aviso de “aberto”, algo romântico e como todas as livrarias deveriam ser. Nunca tinha entrado lá, apenas entreolhado pela janela numa de minhas correrias de paulistano atrasado, com uma curiosidade crescente de mais de um ano. Tinha ainda quarenta minutos sobrando antes que o intervalo acabasse, e optei por gastá-los lá dentro.
Entrei e acenei de forma um pouco tímida para todos que tiveram sua atenção deslocada pelo rangido denunciador da porta, e enquanto dois rapazes e uma criança conversavam sobre cartas e mana de um modo divertido de se ouvir, meus olhos e meus passos se dirigiram para a estante de livros. Pequeno e composto por algumas prateleiras que dividiam espaço com caixas de jogos de tabuleiro, o acervo tinha algumas pérolas da fantasia e vários títulos que desconhecia, e um deles me pegou de sobressalto, o Eclipse ao pôr do sol. Apesar de trabalhar com livros, não tenho o costume de folhear catálogos -- aliás, quanto a qualquer tipo de busca, sou uma pessoa caótica que confia muito no acaso --, e, apesar de estar familiarizado com os títulos da Editora Draco, desconhecia essa coletânea de Antonio Luiz M. C. Costa. Por sua coluna em CartaCapital e seu conto em Fantasias Urbanas (Ed. Draco), imaginei que poderia esperar ao menos uma prosa mais polida que o costume e que teria garantia de diversão. Comprei um volume e uma ediçãozinha de bolso de Lovecraft para fazer par.
Corte para o presente.
O livro do sr. Costa é composto de seis contos: “A Nascente na Serra”, “O Anhanga”, “Louco por um feitiço”, “Papai Noel volta para casa”, “O Cio da Terra” e “Eclipse ao pôr do sol”. A falta de um prefácio se fez notar, especialmente por não ser livro de autor estreante. Um dos contos, aliás, dialoga com a obra de maior ambição de Costa até o momento, Crônicas de Atlântida (Ed. Draco), obra essa que tem até mesmo uma enciclopédia online.
Apesar de terem sido escritos em períodos diferentes, os contos carregam uma unidade metodológica: o uso de elementos que podem ser reconhecidos pelo leitor e que trazem mais sabor aos textos, indo desde personagens consagradas pela tradição literária fantástica até figuras mitológicas e históricas, sempre emolduradas por uma narrativa ligeira que traz esse elementos à luz nos momentos corretos. Seria desnecessário dizer, mas os momentos de identificação desses elementos mostram-se um dos grandes prazeres proporcionados pelos contos de Eclipse ao pôr do sol; alguns em maior, outros em menor grau.
O uso da linguagem é outro atrativo do livro: cada conto traz em seu bojo uma dicção particular tanto na fala das personagens quanto na dos narradores. Em “A Nascente na Serra”, é a voz de um jovem do período quinhentista que ouvimos; “O Anhanga” nos remete a um estilo com divertidos ecos machadianos; chega-se a imaginar que o autor levaria suas aventuras para a rua do Ouvidor ou para o Passeio Público; em “O Cio da Terra” repete-se a ambientação portuguesa, com a diferença de ouvirmos um português de jeito contemporâneo, de 2009; já “Louco por um feitiço” (título que parece não se ajustar ao enredo) tem estilo e vocabulário semelhantes aos de Crônicas de Atlântida; “Eclipse ao pôr do sol” se vale muito da linguagem homérica, bem aplicada nos epítetos e na caracterização das personagens -- Kairos é um bom exemplo disso, assim como muitos dos diálogos entre as divindades; “A volta do Papai Noel” é o conto em que é menos possível identificar uma dicção com origem própria, talvez porque o estilo literário da literatura mitológica germânica não seja tão difundido entre nós brasileiros, lembrando que falo não dos mitos, mas da linguagem utilizada para sedimentá-los.
Após ler o livro de M. C. Costa, constatei que meu passeio na livraria não foi em vão. Li uma prosa bem-escrita e me diverti muito encontrando easter eggs literários; muitas vezes me pegava sorrindo, especialmente ao ler os nomes de Alcides e Viriato e ao perceber alguns contos se abrindo em significados. A conclusão que chego ao ler Eclipse... é que Antonio C. Costa se sai muito bem narrando uma história, mas consegue abrilhantar mais sua escrita quando segue reinventando e costurando mitos, sejam eles literários, religiosos ou históricos.
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