quarta-feira, 31 de julho de 2013

A dúvida como base

Um excerto de Sérgio Milliet bem pertinente em "O Ato Crítico", de Antonio Candido:

O cepticismo (...) traz em seu bojo o construtivismo, porquanto somente poderá se edificar solidamente aquilo que, antes de servir de alicerce, tenha passado pelo crivo miúdo de dúvida.

Está em A Educação pela Noite, 5ª ed., p. 155. É um trecho curto mas muito importante.


punição e justiça

Um cumprimento de sentença no sistema penitenciário deveria se pautar pelo afastamento do penalizado da sociedade, culminando numa futura ressocialização dele. Na real, o que acontece não é isso: é apenas castigo. Ninguém no Brasil é posto numa penitenciária para ser reeducado e entrar em consonância com seus pares, mas simplesmente para ser punido. Até porque penitenciária = lugar de penitência.

E ser "ressocializado" para quê? Para continuar sem um emprego decente, com um salário que dê para comprar aquilo que as propagandas jogam em nossa cara, que devemos ter? Celulares, carros novos, roupas com uma palavra estampada; emblemas de que você não está à margem. E como voltar a fazer parte da sociedade, se você nunca esteve efetivamente nela?

Um exercício básico e que poucos parecem praticar é o da alteridade. Coloque-se na posição do outro; pare de pensar que o *seu* lugar é dentro do carro e que o mal vai te atacar pela janela aberta do seu carro. Imagine-se morando na periferia. Imagine-se filho de migrantes. Imagine-se num contexto em que é mais fácil entrar para o crime do que conseguir um emprego. Imagine-se sem uma educação formal sólida (que deveria ser fornecida pelo Estado, lembre-se) que lhe permitisse passar em concursos públicos ou conseguir trabalhos de remuneração razoável.

Agora, imagine-se por outro prisma: o da vingança. O das paixões. O da justiça. Reflita se o que deseja é um país sem crimes ou se prefere que todo criminoso seja punido. No primeiro caso, a solução -- embora utópica -- seria dividir a renda e criar condições para que todo brasileiro, desde a infância, entrasse em contato com a cultura e tivesse condições dignas de moradia, de alimentação, de saneamento -- pense só na revolução interna pela qual o Estado deveria passar para isso acontecer, já que essa é a base da gênese de um cidadão; o segundo caso é mais simples: aumentar o número de presídios, diminuir a tão falada maioridade penal, aumentar e aparelhar o efetivo policial (sabe, a rrrota na rrrua?).

A primeira opção é virar o país do avesso em busca de uma igualdade mínima; a segunda, manter o statu quo, em que pessoas continuarão sendo mortas por ninharias, e os sobreviventes desejarão punição por vingança, por medo e pelo que julgam ser justiça.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

contrastes

aqui chove, lá fora há névoa
aqui está quente, lá neva
aqui o peito aperta, lá eu não sei

domingo, 7 de julho de 2013

Poema

acordei, abri os olhos
e vi a Lua me olhando
pensando
esse homem parece um koan


sexta-feira, 21 de junho de 2013

o Vinte de junho

tomou a rua a turba
não há placas de conversão
à direita, mas espreita
atenção: fascínoras

sábado, 13 de abril de 2013

Justiça, medo e vingança


Um cumprimento de sentença no sistema penitenciário deveria se pautar pelo afastamento do penalizado da sociedade, culminando numa futura ressocialização dele. Na real, o que acontece não é isso: é apenas castigo. Ninguém no Brasil é posto numa penitenciária para ser reeducado e entrar em consonância com seus pares, mas simplesmente para ser punido. Até porque penitenciária = lugar de penitência.

E ser "ressocializado" para quê? Para continuar sem um emprego decente, com um salário que dê para comprar aquilo que as propagandas jogam em nossa cara, que devemos ter? Celulares, carros novos, roupas com uma palavra estampada; emblemas de que você não está à margem. E como voltar a fazer parte da sociedade, se você nunca esteve efetivamente nela?

Um exercício básico e que poucos parecem praticar é o da alteridade. Coloque-se na posição do outro; pare de pensar que o seu lugar é dentro do carro e que o mal vai te atacar pela janela aberta do seu carro. Imagine-se morando na periferia. Imagine-se filho de migrantes. Imagine-se num contexto em que é mais fácil entrar para o crime do que conseguir um emprego. Imagine-se sem uma educação formal sólida (que deveria ser fornecida pelo Estado, lembre-se) que lhe permitisse passar em concursos públicos ou conseguir trabalhos de remuneração razoável.

Agora, imagine-se por outro prisma: o da vingança. O das paixões. O da justiça. Reflita se o que deseja é um país sem crimes ou se prefere que todo criminoso seja punido. No primeiro caso, a solução -- embora utópica -- seria dividir a renda e criar condições para que todo brasileiro, desde a infância, entrasse em contato com a cultura e tivesse condições dignas de moradia, de alimentação, de saneamento -- pense só na revolução interna pela qual o Estado deveria passar para isso acontecer, já que essa é a base da gênese de um cidadão; o segundo caso é mais simples: aumentar o número de presídios, diminuir a tão falada maioridade penal, aumentar e aparelhar o efetivo policial (sabe, a rrrota na rrrua?).

A primeira opção é virar o país do avesso em busca de uma igualdade mínima; a segunda, manter o statu quo, em que pessoas continuarão sendo mortas por ninharias, e os sobreviventes desejarão punição por vingança, por medo e pelo que julgam ser justiça.

domingo, 17 de março de 2013

Sobre a amizade

O que é a amizade para você?

Começo com uma pergunta e pedindo-lhe que reflita comigo a respeito dela.

Uma das coisas que nos define como seres humanos é a vida em sociedade. Saber lidar com o diferente, aprender a valorizar experiências, dividir nossa ignorância e nossos conhecimentos, tudo isso faz parte da vida em comum. Ao vivermos num mundo obrigatoriamente coletivo, percebemos que aos poucos passamos a fazer parte de teias de relações com outros seres humanos (e mesmo com animais, mas isso fugiria ao que quero comentar). Algumas dessas relações nos são dadas, e a isso chamamos família. Outras são construídas e desconstruídas ao longo de nossas vidas, e essas são a amizade e os amores.

Já deu para ver que estou falando de afeto, não é? E afeto em várias escalas, mas o que me interessa neste momento é o que existe entre pessoas que se consideram amigas. A amizade costuma se dar por afinidades, que podem ser de infinitas categorias: de gênero, de gostos afins, de contiguidade num mesmo espaço (quando uma relação de coleguismo evolui para uma amizade) e por aí vai. Se você já teve algum amigo, sabe do que estou falando, certo? :)

E por que a amizade é tão boa, como dizem? Porque é numa relação de afeto que se dão muitas coisas boas da vida! É apenas com um amigo que você pode partilhar quem você realmente é, pode rir de coisas estapafúrdias e agir sem esperar julgamento (ou ao menos, menos). Podemos nos ferir ao longo da vida e sem dúvida nos ferimos, e a amizade é um dos melhores bálsamos de que podemos nos valer. E podemos curar e apoiar também. Esta é uma das belezas da amizade: ela é uma via de mão dupla.

Mas -- sempre há um mas --, quem tem amigos também pode ter problemas. O principal, eu diria, é a provável dissonância que pode surgir numa amizade com o passar do tempo. Qual pessoa não muda ao longo do tempo? Você pode ter filhos, mudar de emprego e de vida, perder os pais, aprender a tocar um instrumento, passar por uma experiência de quase morte, largar tudo e ir para o Alasca, ganhar na loteria, ler um livro que te dê um estalo, entrar na faculdade, se mudar para outro país etc. Ou simplesmente pode mudar sua maneira de ver as coisas com o tempo, paulatinamente, e não perceber a mudança. Acontece que pessoas mudam. Se dessa mudança não vier maturidade, a amizade pode sofrer um forte abalo e se transformar em cobrança ou em uma forma limitada de inimizade.

Assim como na música, na amizade há ressonâncias, pausas, momentos de emoção e outros que dão sono e por aí vai. Não aceitar todos os aspectos dela (ou pior, não buscar entendê-los) seria limitá-la e transformar sua melhor característica, os laços, em grilhões. Quantas amizades não se extinguiram por conta de uma atitude unilateral? E quantas não evoluíram para outros tipos de afeto ou floresceram mais resplandescentes também por conta de alterações de atitudes ou mesmo de uma entendimento mais profundo do outro?

Retirada de: http://planetasustentavel.abril.com.br/album/veteranas-guerra-703029.shtml
jequitibá-rosa


Eu retomo a questão lá de cima. O que é a amizade para mim? Ela não tem um valor em si nem é um poder absoluto que tudo vence; essas são idealizações nocivas. Amizade é interação! Ela não é uma rocha firme, mas uma árvore que cresce com galhos tortuosos em uma matemática própria, e que eventualmente acaba morrendo e dando mudas. Mas lembre-se: existem árvores que vivem mais de um século!